quarta-feira, março 30, 2005

I'm sad, but so what...everybody is

'o mundo é mau com todo mundo é mau com todo mundo é mau com todo mundo é mau com todo mundo é mau...'

repito a frase como um mantra, na esperança de que meu plano em pause mude de lugar.

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um antigo professor de filosofia que tive uma vez admitiu que gostava de jazz, mas se sentia mal em ouvir, pois não entendia. achei engraçada a declaração, mas discordei na época. nada importa na arte além do prazer que ela naturalmente proporciona, acreditava. a verdade, porém, é que volta e meia me vejo na mesma situação. hoje, ao ver as exposições do ccbb - por sinal, gostei de todas e recomendo - senti uma falta tremenda de saber um pouco mais de história da arte, principalmente no caso do tápes - acho que é assim que se escreve -. porque, mais do que gostar ou não, eu não entendo aquilo ali, o processo de criação, os objetivos, a estrutura, tudo. eu simplesmente não entendo. me sinto, de certa forma, incapaz de emitir uma opinião. o mesmo ocorre em todas as vertentes da arte pós-moderna - poesia concretista, por exemplo. é muito mais complexo do que dizer se eu acho bom ou não, eu simplesmente não sei o que achar. me falta base, me falta entendimento. e, querendo ser artista, eu me pergunto, como posso presumir que sei do que fala godard ou maya deren ou mesmo spielberg se até hoje não aprendi a ler e.e. cummings ou ouvir john cage. toda a arte participa do mesmo processo, e estou alheio a ele. claro, meu talento e instinto podem me salvar. mas eu gostaria de entende-los. ah, e todo o post foi apenas pra dizer que, dentro da minha ignorancia, o soto é um genio. e ponto.

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ando pensando se reformular meu conto do último post não é uma boa. tirar a explicação do porque 'ela' foge do hospital. a vantagem é que ele ficaria mais aberto e subentendido. a desvantagem é que poderia ficar subentendido de mais, e o fim parecer uma criança brincando de fazer um término oposto ao esperado sem razão nenhuma. enfim...se alguém le o blog eu gostaria da opinião sobre o assunto. e, se possível, bem argumentada. é de uma obra de arte - ou perto disso - que estamos falando, porra.

escrito ao som de Wilco - A Ghost Is Born

segunda-feira, março 28, 2005

Romance

Reencontraram-se, sem querer, depois de muitos anos. Ela, casada; ele, com câncer. Conversaram um pouco, o de sempre. Ela, contente; ele, calado. Quase com vergonha, ele assumiu, de vez, que morreria em poucos meses, era certo. Ela pediu um lenço. Ele não tinha. Dezembro despontava no céu e os dois, chorando, se beijaram.

Impulsivamente, ela decidiu. Abandonaria sua vida presente para dedicar-se, de corpo e alma e tudo o mais que houvesse, ao único e verdadeiro amor que teve. Os dois se tocaram. Ela, esfuziante; ele, estupefato. Beijaram-se novamente, rindo. Um riso triste, por certo, mas um riso. Os olhos dos dois brilhavam mais que o sol de fim de ano.

Nos meses seguintes, amaram-se como nunca. Descobriram lugares secretos, posições sexuais, sentimentos, espaços na alma. Descobriram-se, enfim, como nunca tinham descoberto ninguém. Após mais de trinta anos, descobriram que aquilo, aquilo sim, era a vida. A vida, porém, dura pouco. Mas isso os dois já sabiam.

Em meados de fevereiro, o corpo dele desmaiou sobre o dela. Assim, do nada.

Enquanto ele morria, ela rezava no banco da igreja. Dia e noite, quando não estava ao seu lado, no leito hospitalar. Não era religiosa, mas milagres poderiam acontecer, ela dizia para si sem acreditar. Semanas depois, o médico veio avisá-la pessoalmente. O milagre acontecera. Em poucos dias, ele sairia do hospital, vivo como nunca, totalmente recuperado. Milagres, afinal, são assim.

Seu rosto, inicialmente tomado por uma felicidade sobrenatural, logo revelou-se apavorado. Então era isso? Todo aquele romance para nada? Ele ficaria bem, os dois casariam, constituiriam família, etcetera e tal? Impulsivamente, ela decidiu. Abandonaria o hospital e iria embora, sem direção. Passou a porta, tomou o caminho da direita e foi chorar o câncer que matou seu amante.

O homem, quando adentrou a sala de espera e reparou que no banco reservado em sua imaginação não estava o amor dos últimos meses, logo soube. Soube também que faria o mesmo, naquela situação. Que, para eles, não havia saída ou solução. Que ele estava morto e nada mudaria isso. Olhou novamente para os lados, e, na negação de sua amante, passou a porta, tomou o caminho da esquerda e seguiu, sem destino.

Os dois nunca mais se viram.

escrito ao som de Damien Rice - O

solidão

- doutor, acho que estou morto.

mas mesmo assim, conversavam com ele.

certo dia, sentado no chão do cinema, vendo a vida passar como se fossem pernas de mulher, revoltou-se e levantou, gritando. todo mundo, porém, estava longe. seu choro nunca foi visto.

mas mesmo assim, conversavam com ele.

escrito ao som de Arnaldo Baptista - Loki

domingo, março 27, 2005

A Mulher Colorida

Ela é azul, eu sou daltônico. E mesmo sem conseguir distinguir as cores do sinal de trânsito, eu amo ela. Ela ela eva ela. Se a tarde fosse talvez um pouco menos nublada, talvez também não fosse ela, e chegasse para mim uma mulher cinza me oferecendo um café e um cigarro. Eu aceitaria, é claro. Mas quando a mulher cinza fosse embora, no momento em que o sinal abrisse, meu coração ainda estaria dando uma última tragada. Ela, por exemplo, não me ofereceria nada, e iria embora antes mesmo que eu pudesse dizer “te amo”. Eu sou daltônico, ela é o arco-íris.

Ela andava de um lado para o outro, e meu peito a seguia, procurando um modo de rasgar meu corpo, se esgueirar por suas pernas e penetrar seu ventre. A noite era dia, e mais que dia, era a manhã. Sempre a manhã. Naquele raiar, nem em nenhum outro, ela olhou para trás, mas eu mirei à frente. Eternamente. Primeiro Eva me guiou para vida, depois para a morte, e por fim, para um espaço que se encontrava, tênue e corajosamente, entre os dois extremos. Eva era violeta, eu transparência.

O sinal se abriu, e Eva seguiu, se perdendo entre os milhares, milhões, inúmeros rostos acinzentados. E eu, inodoro, insípido, incolor, a perdi também. Eva eva ela eva. Ela era eternamente, eu daltônico. E nos dias que se passaram, o mundo café cigarro cada vez mais cinza. As pontas de minhas unhas perderam a cor, os fios de meu cabelo perderam a cor, o fundo de meus olhos perdeu a cor, e meu corpo a foi perdendo, pouco a pouco, pouco a pouco a pouco a pouco. Sobrava, no fundo de minha alma, a lembrança triste de Eva, e um pouco, pouco a pouco menos, de todas as cores do mundo.

Casei-me com Maria, e até tive filhos. Eu Maria filhos café cigarro. Eu Maria filhos café cigarro. Eu Maria filhos café cigarro. Nas ruas, o sinal abria e fechava, abria e fechava, e me vi, um dia, olhando para trás. Foi quando percebi que nunca mais veria Eva. Eva era ela era Eva. Eva em que meu peito um dia quis ser filho de mim e abandonar meu corpo. Eva que é. E voltando para casa, com meu coração definitivamente cinza, definitivamente eu, definitivamente, decidi ir ao cinema, sozinho. À procura da mulher colorida. Eva é rosa púrpura, eu sou daltônico.

No raiar da sessão, procurei seu cheiro, e Eva encontrou o meu. Foi quando ela, arco-íris, rosa púrpura, violeta, se virou. Com uma dose de horror e espanto, eu percebi. Eva havia, também ela, se acinzentado. E via o filme entre baforadas de um cigarro fedorento e goles secos de um café amargo. Seu cabelo estava podre, e o estado de sua alma decrépito. Não tive coragem de cumprimentá-la, nem somente de olhá-la mais. Um beijo de pena quase escapou de meus lábios, mas pena de que, se eu, seu discípulo mais ardente e fiel, era também cinza? Todos Maria e filhos.

Chegando em casa, beijei as crianças e me deitei. Deitei-me com Eva Maria na cabeça, deitei-me com Eva Maria no corpo, deitei-me com Eva Maria na alma, e na alma não havia mais nada. E sonhei com a mulher azul, que ainda certamente, se encontrava perdida entre os milhões de prédios cinzas, as milhões de pessoas cinzas, as milhões de vidas cinzas e que eu, cinza, daltônico, não pude ver. E Eva atravessou a rua logo antes que eu pudesse dizer: “Te amo".

escrito ao som de Diversos - New Orleans Funk

sexta-feira, março 25, 2005

eu queria morar em uma sala de cinema

sabe quando voce percebe por que estuda aquilo que estuda? pois bem, essa prisão maravilhosa e acolhedora que obriga a gente a se entregar, incessantemente, as imagens e sons - esquecendo-se do mundo lá fora nem que seja por duas horas - me lembra disso o tempo todo. porque o cinema é o cinema e isso basta. não se trata literatura ou de música, o cinema está fora do mundo. e longe de mim querer valorar as artes, é que a questão é outra, o cinema é o cinema e isso basta. depois de assistir nossa música, com a chuva da rua querendo entrar no meu peito, o que mais eu poderia fazer? retornei a minha poltrona ainda quente - ainda minha - e assim consegui ter um pouco mais de calmaria. não importa se o filme é bom - caso do godard - ou mediano - caso do contra a parede -, um filme é um filme e isso basta. me lembro de quando um dilúvio no rio de janeiro me obrigou a passar a madrugada na sala do espaço unibanco assistindo o sorgo vermelho. o mundo se afogando e eu assistindo o sorgo vermelho em minha - ainda quente, ainda minha - poltrona. o cinema é minha arca de noé. o cinema é minha cachaça. o cinema é minha paixão. o mundo lá fora pode estar uma merda, mas o cinema, aqui dentro, não me deixa na mão. o cinema é o cinema e isso basta.

p.s - a falta de aspas é culpa do teclado, não minha.

escrito ao som de Otis Redding - Otis Blue

quarta-feira, março 23, 2005

O novo Odair José

Seu amor

Quando passa na rua
E vai embora
Sem me perceber
Eu finjo acreditar
Que fingiu não me olhar
Que fingiu não me ver

E quando beija outro
Em minha frente
Me ponho a sorrir
Eu finjo acreditar
Que é só pra disfarçar
Que é só pra distrair

E quando me pergunta
Sem interesse
Coisas que eu não sei
Eu finjo acreditar
Que é por não aguentar
Pra ficar tudo ok

Eu gostaria que você
Fosse totalmente
Loucamente
Apaixonaaaaaaaaada por mim

Para fazê-la sofrer
Para fazê-la chorar
Para fazê-la, enfim,

Morrer
De tan
To amar

Morrer
De tan
To amar

Morrer
De tan
To amar...

e então, alguém musica?

segunda-feira, março 21, 2005

Café da Manhã

ela botou o café
dentro da taça
ela botou o leite
dentro da taça de café
ela botou o açúcar
dentro do café com leite
com a pequena colher
ela mexeu
ela bebeu o café com leite
e ela repousou a xícara
sem falar comigo
ela acendeu
um cigarro
ela fez circulos
com a fumaça
ela botou as cinzas
dentro do cinzeiro
sem falar comigo
sem olhar pra mim
ela se levantou
ela botou
seu chapéu em sua testa
ela botou sua capa de chuva
porque chovia
e ela partiu
debaixo da chuva
sem uma palavra
sem olhar pra mim
e eu coloquei
minha testa entre minhas mãos
e chorei

jacques prévert - em tradução quase literal de leonardo levis

p.s - a tradução do silviano santiago é melhor, mas li a poesia hoje na aula de frances e, bem, se alguém indaga sobre o quanto dessa lingua eu sei...é exatamente isso - fingindo que não precisei dar uma olhada no dicionário vez ou outra-. sobre o jacques prévert, aliás, recomendo a qualquer pessoa que le este blog aqui ver 'o boulevard do crime', escrito por ele e dirigido pelo marcel carné. obra-prima absoluta. tem em dvd.

p.p.s - gosto da poesia, mas sobre o mesmo tema prefiro os versos clássicos de jorge ainda ben - voce passa e nao me olha, mas eu olho pra voce/ voce nao me diz nada, mas eu digo pra voce /voce por mim não chora, mas eu choro por voce.

p.p.p.s - aliás, tenho cá comigo uma releitura pós-moderna do último verso. 'voce corta cebola e não chora/ mas eu choro por voce'. genial. era só o jorge fazer uma forcinha pra caber na métrica e tava tudo certo. sobre essa mesma frase... passei a vida inteira pensando que ele cantava 'voce fuma e não chora, mas eu choro por voce'. o choque quando soube que não era assim foi tão grande quanto quando descobri que se fala mussarela e não muzzarela.

p.p.p.p.s - não tenho nada pra falar aqui, na verdade, mas achei interessante bater meu recorde de peesses em um post. ah, meu teclado está quebrado, mas acho que quem aguentou ler esse post até o fim já percebeu.

escrito ao som de radiohead - ok computer

sexta-feira, março 18, 2005

A mulher que não apagava a luz

Quando chorávamos, eu e ela virávamos nossos rostos para lados opostos da cama e silenciávamos nossos soluços. Essa era a única forma de manter as lágrimas invisíveis, as faces impassíveis e a calma em nossas vidas. No escuro, pode-se fingir existências e manusear sentimentos, mas, e talvez por isso, ela não gostava do breu. Dormíamos com as luzes acesas e, desde que elas não cegassem nossos sentidos, a verdade era exposta, irremediavelmente exposta ao olho iluminado do outro. Com o tempo, desenvolvemos artimanhas para que pudéssemos fugir da claridade, mas com o tempo, já nos conhecíamos bem demais, e não necessitávamos nem de um feixe de luz.

- Amor...
- ....
- Amor ...
- hmmm...
- Eu te amo!

Assim apagava a mudez, mas para ela não havia diferença. Meus olhos, meus toques, meus bafos e meus beijos, tudo em mim já era holofote.

escrito ao som de Roberto Carlos - Roberto Carlos 1969

terça-feira, março 15, 2005

Prudente de Moraes!

Bem, a falta de assunto e de tempo e de saco me deixou novamente sem atualizar o blog. Acho que isso acontece comigo sempre, começo animadíssimo a fazer qualquer coisa e quando percebo que não tenho a resposta esperada - normalmente dos outros, nesse caso também de mim - canso. Dessa vez, tenho a faculdade como desculpa. Sim, as aulinhas começaram e esse é um post diaresco!

Aliás, hoje li sobre cinema, vi dois filmes e - tcharam! - fui à aula. Pareço até um estudante aplicado, hein? O melhor momento do dia, porém, foi quando uma aluna de quinto período de uma faculdade da área de humanas verdadeiramente difícil de passar - a minha, ora bolas! - respondeu ao professor que o primeiro presidente eleito por votos da história do Brasil foi o Collor! O Collor! Como justificativa, tentou explicar: "ué, mas não teve a Diretas Já? Não foi pra isso?". O professor, já deprimido porque ninguém da turma sabia o único país do mundo com mais negros que o Brasil - eu incluso - e que presidente eleito foi esse - eu incluso - quase que encerra a aula ali mesmo. O que, aliás, seria muito bom.

Ah, e por que todo livro sobre narrativa - fílmica ou não - passa metade do tempo achando que tá inventando a roda para chegar na incrível solução "uma boa história tem um personagem interessante, um conflito importante e início, meio e fim"? E o pior é que eu não concordo muito com isso. Ai, os Syd Fields desse mundo...

Sem contos, sem poesia sem nada...eu tinha pensado em algo legal para escrever, mas esqueci. Também não postei isso antes? Ai ai ai...deixo vocês com dois combates aí pra ver se alguém comenta.

Van Morrison X Jim Morrison e Kaspar Hauser X O Garoto Selvagem. Quem dá mais?

escrito ao som de João Gilberto - Chega de Saudade

sábado, março 12, 2005

Bandeira

George Clinton, o mentor do Funkadelic, compôs uma triste e simples linha melódica de seis notas. Para transformar em uma canção, mandou seu guitarrista, Eddie Hazel, solar em cima dela como se sua mãe tivesse acabado de morrer. Eddie o fez. O resultado ficou tão bonito, pungente e triste que Clinton, na mixagem, apagou o som dos outros instrumentos. Daí nasceu Maggot Brain.

Bob Dylan, em seu melancólico cd Desire, escreveu uma música para sua ex-mulher, da qual ainda era apaixonado. Coincidentemente, na hora de gravá-la, ela surgiu no estúdio, para visitá-lo. Com os olhos embargados e a boca cheia de emoção, Bob cantou como nunca. Desnecessário dizer que cada nota de Sara é uma explosão de sentimentos.

E daí, o caro leitor deve perguntar...bom, primeiro, eu preciso de um post para hoje e as historinhas são interessantes. Além do mais, é sempre útil recomendar novas músicas. Mas o que quero dizer, na verdade, é bem simples. Arte, porra, precisa de paixão, fúria, tristeza, sentimentos! Estou cansado de ver filmes, músicas, etc., feitos no piloto-automático, certinhos, bonitinho, insossos, para agradar papai-e-mamãe-equemsabecomsorteoscríticos. Será que ninguém vê como dá prazer ver uma obra feita com verdadeiro, intenso, prazer? Que o sangue jorrado para compor uma canção sai da boca do intérprete e cala - ou bate -no fundo da alma do ouvinte? Estou cansado da arte que pode dizer muito, mas nada sente. Porque antes da técnica, antes da palavra, a vida precisa de entrega.

escrito ao som de Van Morrison - Astral Weeks

sexta-feira, março 11, 2005

Fim

Naquele dia, ele acordou triste e percebeu. Não estava mais apaixonado. Sabia que a partir de então enfrentaria as noites e os dias entediado. Que as tardes seriam nubladas. Que os rostos não seriam mais o dela. E sabia que passaria as horas imaginando como seria se falasse, se dissesse, se confessasse, mas que nunca o faria. E que ela nunca saberia, ele sabia. Sabia que sairia de casa na intenção de deixá-la mas que isso não aconteceria, e que no dia seguinte faria o mesmo, incessantemente. Ele sabia. E sabia que, mesmo não carregando sentimento algum, não poderia escrever, não poderia, nada. Ele sabia e estava triste. E sabia que viveria o resto da vida dentro da dela, sem novas namoradas, sorrindo, sofrendo, esperando alguém. Esperando alguém que não era ela. Mas que ele nunca iria confessar, nunca, de forma alguma, ele sabia. Não estava mais apaixonado e era assim. E que os dois esperariam meses, anos, por outro alguém, ele sabia, mas que a vida era assim mesmo, isso nada significa. E que se, por acaso, um mero acaso feliz, ele sumisse e os dois acabassem, que voltariam, um dia. Voltariam e ele sabia. Ele sabia e estava triste. Mas sabia também que não, eles nunca acabariam, não, ela não esperava por outro, sim, ela era feliz com ele. Ela era feliz e isso o deixava triste. E deixaria, sempre. E ele pensaria em discursos, poesias, romances, mas nunca escreveria, não, nunca, nada. Ele sabia, enfim, que estaria insensível, totalmente insensível, profundamente insensível até que encontrasse um novo amor, mais forte, mais sincero e mais doloroso.

escrito ao som de Elliot Smith - Either/Or

quinta-feira, março 10, 2005

Meio

Ela faz a janta. Ela lava as roupas, arruma o quarto e veste sua calcinha de renda esperando ser comida. Ela geme, alto, como sempre. Ela dorme abraçada e me acorda com beijos. Ela anda na casa como se fosse dela. Eu grito sem razão, ela chora e me perdoa. Sabe que eu grito, sabe que eu vou gritar. Mas chora, sozinha, escondida. Ela vai ao banheiro para chorar. Eu ouço ela chorar e ela sabe que eu ouço, mas finge não saber. Ela me conhece. Eu sei quando ela está triste e disfarça. Eu sei e grito. Eu grito porque sei. Eu grito porque sei que ela vai chorar. Ela disfarça. Nós dois disfarçamos, sempre. A gente se conhece.

escrito ao som de Monarco - Monarco (1976)

terça-feira, março 08, 2005

Início

Naquele dia, ele acordou triste e percebeu. Estava apaixonado. Sabia que a partir de então enfrentaria as noites em claro e os dias com sono. Que as tardes seriam nubladas. Que os rostos seriam o dela. E sabia que passaria as horas imaginando como seria se falasse, se dissesse, se confessasse, mas que nunca o faria. E que ela nunca saberia, ele sabia. Sabia que sairia de casa na intenção de encontrá-la e que isso não aconteceria, e que no dia seguinte faria o mesmo, incessantemente. Ele sabia. E sabia que, mesmo carregando todos os sentimentos do mundo, não poderia escrever, não poderia, nada. Ele sabia e estava triste. E sabia que ela viveria o resto da vida à sua margem, arranjando namorados, sorrindo, amando, ou até mesmo esperando por alguém. Que ela estaria esperando por alguém que não era ele. Ou que fosse, mas ele nunca iria confessar, nunca, de forma alguma, ele sabia. Estava apaixonado e era assim. E que os dois esperariam meses, anos, um pelo outro, ele sabia, mas que a vida é assim mesmo, isso nada significa. E que se, por acaso, um mero acaso feliz, por acaso ele a beijasse e os dois ficassem juntos, que acabaria, um dia. Acabaria e ele sabia. Ele sabia e estava triste. Mas sabia também que não, eles nunca ficariam juntos, não, ela não esperava por ele, sim, ela era feliz. Ela era feliz e isso o deixava triste. E deixaria, sempre. E ele pensaria em discursos, poesias, romances, mas nunca escreveria, não, nunca, nada. Seria para sempre um segredo e ele sabia. Ele sabia, enfim, que estaria apaixonado, totalmente apaixonado, profundamente apaixonado por ela até que encontrasse um novo amor, mais forte, mais sincero e mais doloroso.

escrito ao som de Tom Waits - Closing Time

segunda-feira, março 07, 2005

Velhice

Você vai pegar uma cerveja e volta com um chá.

escrito ao som de Velvet Underground - Velvet Underground and Nico

domingo, março 06, 2005

Oscar e Eu

Bem, como um estudante de cinema aplicado - hahahahahaha! - posto aqui minhas impressões sobre os filmes indicados ao Oscar. Você, caro leitor resmungão, pode argumentar que o Oscar já passou faz uma semana e caso eu não saiba o Eastwood deixou o Scorsese com cara de bunda novamente - e infelizmente - e blá blá blá blá blá. Sim, prezado leitor irritadinho,você está absolutamente certo, mas como um estudante de cinema aplicado - claques de sitcom agora, por favor - resolvi postar meus comentários apenas quando tivesse visto todos os filmes concorrentes. Sim, é verdade, leitor chato e espertinho, eu não vi todos os filmes concorrentes, nem uma semana depois do Oscar. Mas como Ray vai ficar no mínimo pro dvd e daqui a seis meses esse papo de impressão vai estar um pouco antigo eu quero que você, animado leitor, se foda.

Em Busca da Terra do Nunca: O piorzinho, em minha opinião. Vejam bem, não achei uma merda, mas também está longe da maravilha sensível que muitos apregoam. A dicotomia sempre presente entre fantasia e realidade - deixada clara pela montagem -, o tom pomposo e dramático, os clichês de sempre impedem o filme de ir além de um drama bonitinho e razoavelmente sensível. Resumindo, um filme de fantasia que não voa.

Sideways: Provavelmente o fato de ser muito melhor que o anterior do diretor levou as pessoas a acharem esse filme um exemplo de humanismo. Não é. De qualquer forma, um road movie simpático, com o grande problema de que, depois de cada cena sincera na qual a obra de Alexander Payne quase te conquista, ela resolve quebrar o clima com uma piada, um plano, enfim, uma sugestão cínica, ficando com cara dos produtos asséticos e agridoces que Hollywood adora. Enfim, parafraseando uma amiga, estou cansado de filmes de amor que não se entregam.

O Aviador: Parece ter virado clichê que o filme do Scorsese é frio e, portanto, medíocre. Discordo totalmente tanto de uma afirmação quanto outra. Uma obra em que cada plano revela uma paixão imensa pelo cinema frio já não pode ser. O Aviador, porém, é muito mais. Reflexão sobre a estrutura da América, sobre a doença e o dinheiro, sobre a solidão, principalmente, sustentam, e bem, as 3 horas de projeção. Se não chega a ser uma obra-prima, é um filme mais que sincero e respeitável de, indiscutivelmente, um dos maiores diretores americanos em atividade. E a equipe do diretor - fotográfo, montadora e sim, atores! - é absurdamente foda. Se o Oscar não quer ver nada disso, bem, eu não vou fechar meus olhos.

Menina de Ouro: Meu favorito dos 4. Um filme onde cada plano revela - muito mais devido à genial direção do que ao número de clichês abundante do roteiro - um sentimento enorme, que transborda da tela e chega, naturalmente, ao espectador. E como todo sentimento, quando exposto em sua verdade, é de uma profundidade imensa, Eastwood nos brinda com um arsenal de infinitos. Filme de amor, sacrifício, sofrimento, onde cada um dos clichês é superado porque de superficial Menina de Ouro não tem nada.

Ray: Como disse, não vi. Mas estou ouvindo e, porra, é do caralho!

Faltaram na premiação Antes do Pôr-do-Sol, Colateral, A Vila e mais uns poucos...mas, comparando o vencedor desse ano com o de Cannes passada, bem, tô com o velhinho careca e não abro.

P.S: Meu caso de ódio com a maratona do Odeon permanece. Dessa vez, meio cinema batendo palmas depois de cada fade out de
Estranhos no Paraíso. Porra, se não queriam ver o filme que dormissem ou voltasse para casa. Tão mais fácil...enfim, mês que vem tô lá para me irritar de novo. Masoquismo perde...

escrito ao som de Ray Charles - Modern Sounds in Country and Western Music

sábado, março 05, 2005

Tristeza

Às vezes preciso te beijar mas, normalmente, quero apenas te mandar à merda.
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Sinto frio. Alguém me ensina a dormir?
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nho
zi

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E ontem este blog não foi atualizado. Será o início do fim?

escrito ao som de silêncio

quinta-feira, março 03, 2005

Romeu e Julieta

[por falta de tempo, ou melhor, exagero de filmes e sono, não atualizarei meu blog hoje com algo novo. em compensação, iniciarei minha série "posts do além", com os posts apagados do blog anterior que eu ainda gosto. No caso, um mini-conto.]

O senhor desocupado, do alto de seus oitenta anos, talvez mais, pensava na vida enquanto andava calmamente, bengala em punho, óculos na face, dentadura e aparelho de ouvido. Reminiscências dos tempos de criança, leituras e amores. A apresentação de Romeu e Julieta aos doze anos de idade. Romeu e Julieta aos quinze, dezoito, vinte e dois...

Logo tropeçou em uma pequena pedra e quase se desequilibrou, sendo ajudado por dois passantes. Tragédia infantil, idealista, imatura, romântica, piegas!

- Mais uma, amigo!

No pé-sujo da esquina, onde repousava diariamente de duas às seis, garrafas e garrafas de cerveja. Depois chorava, consolado pelo dono do bar.

escrito ao som de Aracy de Almeida - interpreta Noel

quarta-feira, março 02, 2005

"Ciberlinguagem" ou "Porque perdi de vez minha fé no Telecine"

Ok, eu já sei que o Telecine não é para pessoas que gostam de cinema - aliás, eu já deveria saber que canais de tevê não são para pessoas que gostam de cinema. Por causa disso, aceito filmes fora da projeção certa, aceito a aclamação de Rubens Ewald Filho como maior crítico nacional e as suas consequentes mostras de princesinhas do cinema americano em vez de bons diretores, e, com alguma força de vontade, chego a aceitar até a criação do Telecine Pipoca - canal que, confesso, nunca assisti, e pretendo que continue assim. Mas, quando você acha que a querida rede já chegou ao cumulo do ridículo, parece que ela se esforça para te mostrar que é possível afundar ainda mais. Vejamos, quem teve a idéia genial de passar um filme - um filme jovem, diga-se de passagem - com "linguagem da internet"? Isso mesmo, caros leitores, linguagem da internet! Liguei a tevê, sintonizei no TC1, e um quadrinho de computador - esses de programa de bate-papo - ocupava o lugar das legendas ditas normais, com inúmeros "vcs" "agr" "c/" se sucedendo sem parar. Não estou aqui para criticar essa linguagem per se, eu a utilizo também. Mas os programadores inteligentíssimos da empresa resolvem abolir o uso da norma culta - e, como norma que é, igual a todos - para reduzir seu público a um nicho mínimo de pessoas que utiliza esse tipo de escrita, além de contribuir para que esse nicho mínimo não saiba usar qualquer outro. E nem preciso comentar que, por ser uma linguagem variada, a uniformização dela utilizada pelo canal dificulta não só os leigos mas qualquer um que se disponha a ver o filme assim. Eu, por exemplo, tinha de me desligar do filme cada vez que um "agr" aparecia na tela.

Mas fico triste mesmo quando penso que, daqui a 15 anos, verei numa entrevista o Rubinho se achando o gênio absoluto, todo prosa, contando que revolucionou o sistema de legendas com a supracitada ciberlinguagem, agora já moeda corrente em todos os canais. E que eu, infelizmente, já estarei acostumado com tudo isso...

escrito ao som de Gerson King Combo - uma coletânea qualquer

terça-feira, março 01, 2005

Arnaldo e os Pássaros

Arnaldo olhou para baixo. O mundo desconhecia sua presença. Talvez, no funeral, alguém chorasse, mas a verdade é que alguém sempre chora. O mundo desconhecia sua presença e Arnaldo sabia disso. Arnaldo sabia. Arnaldo ajeitou a gravata, arrumou o cabelo e olhou novamente. Não queria morrer desarrumado. Depois do salto, não haveria mais como se arrepender e Arnaldo sabia disso. Arnaldo sabia. Mas, mesmo assim, respirou profundamente, deu dois curtos passos e se jogou, rumo ao infinito, rumo à imensidão, rumo ao nada. Não havia mais como se arrepender e Arnaldo sabia disso. O mundo desconhecia sua presença.

Aos primeiros indícios de morte iminente – aceleração constante de velocidade, náusea, dores no corpo – Arnaldo fechou os olhos e decidiu não pensar mais em nada. Se era para desabar, que não visse acontecer. Arnaldo, de olhos fechados, e o mundo o empurrando para baixo. Arnaldo, de olhos fechados e o mundo o empurrando para baixo. Arnaldo, de olhos fechados – os olhos desabados, como Arnaldo –, quando tudo, subitamente, parou. E Arnaldo, estranhamente, ainda sentia seu corpo. E Arnaldo, estranhamente, podia abrir os olhos. E Arnaldo, estranhamente, não tinha tocado o chão.

Olhos mais abertos do que nunca, Arnaldo percebeu se encontrar entre o décimo-segundo e o décimo-terceiro andar do arranha-céu onde trabalhava e do qual, naquela fatídica manhã, resolvera se jogar. Arnaldo estava parado, arranhando o céu, e ninguém percebia. Arnaldo estava parado e o mundo desconhecia sua presença. O mundo desconhecia sua presença e Arnaldo estava feliz. Lentamente, Arnaldo mexeu os dedos dos pés e impulsionou seu corpo com os dois braços, para frente e para trás, para frente e trás, frente e trás, te e trá, te e trá, nadando no ar. Arnaldo nadava no ar e estava feliz.

E nadando no ar ele ficou. Arnaldo nadando no ar, Arnaldo nadando, no ar, nadando, Arnaldo no ar. E no ar ele ficou. Saiu debaixo do imponente prédio e foi vasculhar o mundo. E Arnaldo voava, voava, te e trá, te e trá, nadando no ar. E Arnaldo um dia conheceu tudo que queria, e Arnaldo um dia conheceu o mundo, o mundo que desconhecia sua presença. E as pessoas, que andavam andavam andavam não viam Arnaldo, que nadava no ar. E um dia Arnaldo cansou, e deitou em uma ilha deserta, debaixo de uma palmeira, e dormiu. E Arnaldo dormiu e sabia disso.

Na rua, debaixo do arranha-céu, uns pedestres se desesperaram, outros se deprimiram, e outros continuaram andando como se nada tivesse acontecido. Policiais chegaram e examinaram o local. Uma velhinha pudica gemeu um “ah, meu Deus!” e depois tapou a boca. Boatos surgiram, e ganharam status de verdade. Alguém tirou uma foto e publicou no jornal. As vendas no jornal daquele dia não foram tão altas e o chefe reclamou. O fotógrafo e o repórter ficaram chateados mas tudo bem! acontece! vamos para outra!. Anoiteceu e todos saíram da rua. Dias depois, ninguém se lembrava do caso.

Para terminar a crônica com um incidente interessante, porém, relato o caso da briga do taxista, estressado com o trânsito, com Dona Zulmira, a vendedora de cachorro-quente. Ele não entendia como, diante de tamanha calamidade, ela permanecia com seu eterno bom humor. Chegou até a gritar alguns impropérios, que não são de bom grado repetir aqui. Foi embora tão, mas tão revoltado, que bateu o carro dois quarteirões depois, quebrando o braço e machucando o tórax. Como se vê, de nada adiantou Dona Zulmira jurar que via, por debaixo da boca estraçalhada e repleta de sangue daquele homem de gravata arrumada, esconder-se um sorriso.

escrito ao som de Van Morrison - Moondance