terça-feira, março 01, 2005

Arnaldo e os Pássaros

Arnaldo olhou para baixo. O mundo desconhecia sua presença. Talvez, no funeral, alguém chorasse, mas a verdade é que alguém sempre chora. O mundo desconhecia sua presença e Arnaldo sabia disso. Arnaldo sabia. Arnaldo ajeitou a gravata, arrumou o cabelo e olhou novamente. Não queria morrer desarrumado. Depois do salto, não haveria mais como se arrepender e Arnaldo sabia disso. Arnaldo sabia. Mas, mesmo assim, respirou profundamente, deu dois curtos passos e se jogou, rumo ao infinito, rumo à imensidão, rumo ao nada. Não havia mais como se arrepender e Arnaldo sabia disso. O mundo desconhecia sua presença.

Aos primeiros indícios de morte iminente – aceleração constante de velocidade, náusea, dores no corpo – Arnaldo fechou os olhos e decidiu não pensar mais em nada. Se era para desabar, que não visse acontecer. Arnaldo, de olhos fechados, e o mundo o empurrando para baixo. Arnaldo, de olhos fechados e o mundo o empurrando para baixo. Arnaldo, de olhos fechados – os olhos desabados, como Arnaldo –, quando tudo, subitamente, parou. E Arnaldo, estranhamente, ainda sentia seu corpo. E Arnaldo, estranhamente, podia abrir os olhos. E Arnaldo, estranhamente, não tinha tocado o chão.

Olhos mais abertos do que nunca, Arnaldo percebeu se encontrar entre o décimo-segundo e o décimo-terceiro andar do arranha-céu onde trabalhava e do qual, naquela fatídica manhã, resolvera se jogar. Arnaldo estava parado, arranhando o céu, e ninguém percebia. Arnaldo estava parado e o mundo desconhecia sua presença. O mundo desconhecia sua presença e Arnaldo estava feliz. Lentamente, Arnaldo mexeu os dedos dos pés e impulsionou seu corpo com os dois braços, para frente e para trás, para frente e trás, frente e trás, te e trá, te e trá, nadando no ar. Arnaldo nadava no ar e estava feliz.

E nadando no ar ele ficou. Arnaldo nadando no ar, Arnaldo nadando, no ar, nadando, Arnaldo no ar. E no ar ele ficou. Saiu debaixo do imponente prédio e foi vasculhar o mundo. E Arnaldo voava, voava, te e trá, te e trá, nadando no ar. E Arnaldo um dia conheceu tudo que queria, e Arnaldo um dia conheceu o mundo, o mundo que desconhecia sua presença. E as pessoas, que andavam andavam andavam não viam Arnaldo, que nadava no ar. E um dia Arnaldo cansou, e deitou em uma ilha deserta, debaixo de uma palmeira, e dormiu. E Arnaldo dormiu e sabia disso.

Na rua, debaixo do arranha-céu, uns pedestres se desesperaram, outros se deprimiram, e outros continuaram andando como se nada tivesse acontecido. Policiais chegaram e examinaram o local. Uma velhinha pudica gemeu um “ah, meu Deus!” e depois tapou a boca. Boatos surgiram, e ganharam status de verdade. Alguém tirou uma foto e publicou no jornal. As vendas no jornal daquele dia não foram tão altas e o chefe reclamou. O fotógrafo e o repórter ficaram chateados mas tudo bem! acontece! vamos para outra!. Anoiteceu e todos saíram da rua. Dias depois, ninguém se lembrava do caso.

Para terminar a crônica com um incidente interessante, porém, relato o caso da briga do taxista, estressado com o trânsito, com Dona Zulmira, a vendedora de cachorro-quente. Ele não entendia como, diante de tamanha calamidade, ela permanecia com seu eterno bom humor. Chegou até a gritar alguns impropérios, que não são de bom grado repetir aqui. Foi embora tão, mas tão revoltado, que bateu o carro dois quarteirões depois, quebrando o braço e machucando o tórax. Como se vê, de nada adiantou Dona Zulmira jurar que via, por debaixo da boca estraçalhada e repleta de sangue daquele homem de gravata arrumada, esconder-se um sorriso.

escrito ao som de Van Morrison - Moondance

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