domingo, março 27, 2005

A Mulher Colorida

Ela é azul, eu sou daltônico. E mesmo sem conseguir distinguir as cores do sinal de trânsito, eu amo ela. Ela ela eva ela. Se a tarde fosse talvez um pouco menos nublada, talvez também não fosse ela, e chegasse para mim uma mulher cinza me oferecendo um café e um cigarro. Eu aceitaria, é claro. Mas quando a mulher cinza fosse embora, no momento em que o sinal abrisse, meu coração ainda estaria dando uma última tragada. Ela, por exemplo, não me ofereceria nada, e iria embora antes mesmo que eu pudesse dizer “te amo”. Eu sou daltônico, ela é o arco-íris.

Ela andava de um lado para o outro, e meu peito a seguia, procurando um modo de rasgar meu corpo, se esgueirar por suas pernas e penetrar seu ventre. A noite era dia, e mais que dia, era a manhã. Sempre a manhã. Naquele raiar, nem em nenhum outro, ela olhou para trás, mas eu mirei à frente. Eternamente. Primeiro Eva me guiou para vida, depois para a morte, e por fim, para um espaço que se encontrava, tênue e corajosamente, entre os dois extremos. Eva era violeta, eu transparência.

O sinal se abriu, e Eva seguiu, se perdendo entre os milhares, milhões, inúmeros rostos acinzentados. E eu, inodoro, insípido, incolor, a perdi também. Eva eva ela eva. Ela era eternamente, eu daltônico. E nos dias que se passaram, o mundo café cigarro cada vez mais cinza. As pontas de minhas unhas perderam a cor, os fios de meu cabelo perderam a cor, o fundo de meus olhos perdeu a cor, e meu corpo a foi perdendo, pouco a pouco, pouco a pouco a pouco a pouco. Sobrava, no fundo de minha alma, a lembrança triste de Eva, e um pouco, pouco a pouco menos, de todas as cores do mundo.

Casei-me com Maria, e até tive filhos. Eu Maria filhos café cigarro. Eu Maria filhos café cigarro. Eu Maria filhos café cigarro. Nas ruas, o sinal abria e fechava, abria e fechava, e me vi, um dia, olhando para trás. Foi quando percebi que nunca mais veria Eva. Eva era ela era Eva. Eva em que meu peito um dia quis ser filho de mim e abandonar meu corpo. Eva que é. E voltando para casa, com meu coração definitivamente cinza, definitivamente eu, definitivamente, decidi ir ao cinema, sozinho. À procura da mulher colorida. Eva é rosa púrpura, eu sou daltônico.

No raiar da sessão, procurei seu cheiro, e Eva encontrou o meu. Foi quando ela, arco-íris, rosa púrpura, violeta, se virou. Com uma dose de horror e espanto, eu percebi. Eva havia, também ela, se acinzentado. E via o filme entre baforadas de um cigarro fedorento e goles secos de um café amargo. Seu cabelo estava podre, e o estado de sua alma decrépito. Não tive coragem de cumprimentá-la, nem somente de olhá-la mais. Um beijo de pena quase escapou de meus lábios, mas pena de que, se eu, seu discípulo mais ardente e fiel, era também cinza? Todos Maria e filhos.

Chegando em casa, beijei as crianças e me deitei. Deitei-me com Eva Maria na cabeça, deitei-me com Eva Maria no corpo, deitei-me com Eva Maria na alma, e na alma não havia mais nada. E sonhei com a mulher azul, que ainda certamente, se encontrava perdida entre os milhões de prédios cinzas, as milhões de pessoas cinzas, as milhões de vidas cinzas e que eu, cinza, daltônico, não pude ver. E Eva atravessou a rua logo antes que eu pudesse dizer: “Te amo".

escrito ao som de Diversos - New Orleans Funk

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