segunda-feira, março 28, 2005

Romance

Reencontraram-se, sem querer, depois de muitos anos. Ela, casada; ele, com câncer. Conversaram um pouco, o de sempre. Ela, contente; ele, calado. Quase com vergonha, ele assumiu, de vez, que morreria em poucos meses, era certo. Ela pediu um lenço. Ele não tinha. Dezembro despontava no céu e os dois, chorando, se beijaram.

Impulsivamente, ela decidiu. Abandonaria sua vida presente para dedicar-se, de corpo e alma e tudo o mais que houvesse, ao único e verdadeiro amor que teve. Os dois se tocaram. Ela, esfuziante; ele, estupefato. Beijaram-se novamente, rindo. Um riso triste, por certo, mas um riso. Os olhos dos dois brilhavam mais que o sol de fim de ano.

Nos meses seguintes, amaram-se como nunca. Descobriram lugares secretos, posições sexuais, sentimentos, espaços na alma. Descobriram-se, enfim, como nunca tinham descoberto ninguém. Após mais de trinta anos, descobriram que aquilo, aquilo sim, era a vida. A vida, porém, dura pouco. Mas isso os dois já sabiam.

Em meados de fevereiro, o corpo dele desmaiou sobre o dela. Assim, do nada.

Enquanto ele morria, ela rezava no banco da igreja. Dia e noite, quando não estava ao seu lado, no leito hospitalar. Não era religiosa, mas milagres poderiam acontecer, ela dizia para si sem acreditar. Semanas depois, o médico veio avisá-la pessoalmente. O milagre acontecera. Em poucos dias, ele sairia do hospital, vivo como nunca, totalmente recuperado. Milagres, afinal, são assim.

Seu rosto, inicialmente tomado por uma felicidade sobrenatural, logo revelou-se apavorado. Então era isso? Todo aquele romance para nada? Ele ficaria bem, os dois casariam, constituiriam família, etcetera e tal? Impulsivamente, ela decidiu. Abandonaria o hospital e iria embora, sem direção. Passou a porta, tomou o caminho da direita e foi chorar o câncer que matou seu amante.

O homem, quando adentrou a sala de espera e reparou que no banco reservado em sua imaginação não estava o amor dos últimos meses, logo soube. Soube também que faria o mesmo, naquela situação. Que, para eles, não havia saída ou solução. Que ele estava morto e nada mudaria isso. Olhou novamente para os lados, e, na negação de sua amante, passou a porta, tomou o caminho da esquerda e seguiu, sem destino.

Os dois nunca mais se viram.

escrito ao som de Damien Rice - O

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