domingo, abril 10, 2005

Eu

Homem, branco, heterossexual e com dinheiro. Mais classe dominante, impossível.

Pais casados, dois irmãos, cãozinho. Família ajustada segundo a lógica filhinhos loirinhos sorrindo no campo. Aquela que varre a sujeira para debaixo do tapete, sabendo que nunca será encontrada.

Sem grandes - ou pequenas - tragédias. Nem terremoto, morte de pessoa querida, sequestro, trauma de infância, ou ao menos uma tartaruga caída na cabeça enquanto passeava pela rua. Nada.

Homem saudável, na medida do possível. Sem sintomas de epilepsia, hipocondria, obesidade, depressão, witzesucht... No máximo uma timidez incurável e uma tendência a ser anti-social, mas nada disso conta.

No fundo, sou apenas aquele típico burguês preguiçoso que escreve para aplacar o tédio, pois o tédio é tudo que o burgês preguiçoso verdadeiramente tem. Quando a vida bate à minha porta, me escondo. Minha arte é fútil, superficial, racional. Não há como ser diferente.

Sinto uma estranha inveja daqueles que carregam em si problemas insolúveis, depressões justificadas, sentimentos radicais. Que sofrem de doenças desconhecidas, tragédias inomináveis, traumas eternos. Que morrem a cada dia, minuto, segundo. Que guardam o mundo dentro do corpo. E sofrem por isso.

Uma estranha inveja daqueles que, com uma única palavra jorrada no papel, revelam mais vida do que a minha vida inteira revelou.

escrito ao som de Funkadelic - One Nation Under A Groove

|